O Cuidado de Enfermagem

Atualizado em 14/05/2023 às 11:38

Ao escolher a Enfermagem, escolhe-se também, o envolvimento genuíno com outro ser humano. Cuidar para o viver e cuidar para o morrer, o estar com o outro, no tempo e espaço, compartilhados.

Para “cuidar” em Enfermagem, entende-se, que é preciso, antes de tudo, se apropriar do humano e despertar a humanidade no outro; é preciso ainda olhar e ver, tocar e sentir, ouvir e escutar, perceber e compreender situações que muitas vezes estão veladas para a razão. O cuidar do ser, o cuidado da pessoa que se encontra em situação de doença, ou, vulnerável a ela, revela originalmente o sentido da própria existência da enfermagem.

É pelo cuidado que se faz a esse ser-paciente que a enfermagem se projeta e se mantém como profissão. É pelo cuidar que a profissão expressa e manifesta seu corpo de conhecimentos, de habilidades e atitudes. É pelo cuidar que a enfermagem cria e recria a própria cultura do cuidar, que é, na sua essência, ética (GRAÇAS; SANTOS, 2009).

Em meados do século XX, iniciou-se uma nova fase na Enfermagem, em que se deixou de valorizar apenas os aspectos técnicos do cuidado e voltou-se para a compreensão dos sujeitos envolvidos, no processo cuidar-cuidado. Esse movimento se solidificou e expandiu internacionalmente (CRIVARO; ALMEIDA; SOUZA, 2007).

À medida que a Enfermagem buscou compreender o ser em sua múltipla dimensionalidade, abriu o cenário de possibilidades do cuidado do outro em sua integralidade. Ao lidar com questões existenciais de quem cuida, apropriou-se da fenomenologia como suporte para suas reflexões e sua prática, numa imersão na subjetividade e na essência que permeia o cuidar (TERRA et al., 2006).

Carvalho e Valle (2008) consideram que a enfermagem no seu desenvolvimento histórico em direção à cientificidade também trilhou e ainda trilha os caminhos da ciência dita positiva. Nesse seu trajeto em busca da maioridade científica, a enfermagem inspirou-se no modelo tradicional biomédico das ciências naturais e experimentais. O modelo biomédico obedece às exigências do positivismo, que não aceita o conhecimento que não venha da experimentação.

Graças e Santos (2009) observam a existência de um movimento tácito e, ao mesmo tempo, paradoxal sobre o que é o cuidar em enfermagem, vislumbrando a possibilidade de ruptura com o modelo médico-biológico, salientando que mesmo assim ainda persiste a ideia do cuidar como um ato técnico, como um procedimento.

Neste sentido, os cuidados preservam o mesmo significado de técnicas, os quais podem ser executados por qualquer pessoa da equipe de enfermagem, numa relação sujeito/objeto. Ademais, os diversos chavões usados no cotidiano do trabalho, de que cuidar é ver a pessoa como um todo, é ver o cliente/paciente como um ser holístico, é humanizar o seu atendimento, dentre outros, são representações que mascaram a realidade da atuação profissional.

Entretanto, para Carvalho (2007), a posição social da Enfermagem é ainda bem delicada, ou pelos limites do agir profissional no campo das ciências da saúde, ou pelos próprios desafios de investigar e produzir conhecimentos para ampliar o espaço do saber profissional.

Ainda corroboram Carvalho e Valle (2008) que com o vigoroso avanço científico dos últimos tempos, a enfermagem sofreu profundas modificações, que se caracterizaram principalmente pela fragmentação, pela compartimentalização do objeto de seu cuidado. Como consequência lógica e — poderíamos dizer inevitáveis — dessa fragmentação, surgiram e se impuseram de forma efetiva as regras, as rotinas, as normas e os regulamentos, que acabaram por massificar o cuidado de enfermagem.

Mais do que isso, esse cuidado se tornou de tal modo impessoal que se referia mais à doença que ao ser humano, perdendo a visão do todo. A sofisticada tecnologia, os aparatos mecânicos que possibilitaram o prolongamento artificial da vida, os transplantes, a obstinada luta contra a morte e a doença, colocaram o homem e sua humanidade em segundo plano, quando do assistir, do cuidar da enfermagem.

Boemer (2011) aponta que a questão das técnicas também pode receber outra significação. As técnicas instrumentalizam o processo de trabalho em saúde e se constituem em conteúdo fundamental no processo de formação dos profissionais; entretanto, é preciso saber desenvolvê-las com competência não para cuidar do homem como um objeto fragmentado, mas, justamente, para superar o efeito
tecnicista da própria técnica. Não há como desvincular, durante a realização de um procedimento técnico, os aspectos afetivos e existenciais do homem a quem cuidamos. Se isso for respeitado, a relação se fortalece.

Carvalho e Valle (2008) salientam que, ao mesmo tempo em que há uma forma mais humanística e diferenciada do cuidar, há ainda uma fundamentação em pressupostos teórico-metodológicos, consoante o paradigma médico. Em outras palavras, o paciente continua sendo focado como um objeto depositário de um saber lógico-racional, ou seja, objetivado pela ação desse modo de conceber o cuidado.

Tal forma habitualmente aceita de lidar com o fenômeno cuidar em enfermagem parece dificultar, na prática, discussões mais aprofundadas sobre a sua natureza. Holanda (2011, p.78) enfatiza que “o desafio de cuidar do humano reside na intrínseca necessidade de se questionar – continuamente – o seu ‘fazer’, naquilo que o coloca como produto e produtor de dimensões ideológicas que alienam o homem de seu ser-próprio, de seu ‘ser-sendo’ num contexto de determinações e envolvimentos múltiplos”.

Boemer (2011, p. 57-58) ainda acrescenta que isso implica compreender o humano em sua subjetividade, captando o seu sentir-se próprio doente. Nesse sentido, cuidar desse humano não envolve apenas buscar e reunir dados para elucidar diagnósticos e propor terapêuticas, como o previsto pela lógica técnicocientífica; requer uma aproximação, um acolhimento que nos ajude a compreendê-lo nas suas diversas facetas: 

ï‚· conseguimos captar o seu mundo-vida? Quais suas relações significativas?
ï‚· como vivencia a doença em sua existência?
ï‚· como se sente inserido no mundo dos serviços de saúde?
ï‚· como esse mundo se apresenta a ele?

ï‚· como vê os profissionais de saúde que dele cuidam?
ï‚· como vê os cuidados que lhe são prestados?
ï‚· – como nos vê: – como pessoas cuidadoras ou descuidadoras?

Em suma, para Graças e Santos (2009), a enfermagem tem procurado compreender o ser humano em sua totalidade, deixando de lado aquele ser fragmentado que, muitas vezes, revela-se apenas como depositário de seu fazer. Um fazer que se respalda num conhecimento objetivo, técnico-científico, numa relação sujeito/objeto, esvaziada de qualquer ação de natureza expressiva. Ações estas que estão distantes de se configurarem como a arte do cuidar, em seu amplo sentido da ética existencial e da estética.

Para Boemer (2011), apesar do predomínio do modo de ser profissional, técnico-científico e objetivo, em cada um de nós reside a possibilidade de construir encontros genuínos, marcados pela intersubjetividade. Podemos falar de modo simples; utilizando-se de uma simplicidade não no sentido trivial ou superficial, mas na direção de acolher a vida em suas incertezas, despojando-nos de frases prontas, de comportamentos padronizados, deixando fluir o sentir que extrapola qualquer forma de controle e objetivação. 

O profissional de saúde pode despojar-se de uma postura padronizada, acadêmica, assumindo a sua humanidade, buscando por uma proximidade, a qual, inicialmente, pode ser até física, mas que, gradativamente, vai assumindo outras configurações, abrindo espaços para o diálogo (BOEMER, 2011).

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